Opinião: Análise dos Temas 881 e 885 do STF e seus impactos

Por Murillo Braga

Existe um famoso ditado que diz que “da barriga da mulher grávida e da cabeça de juiz, ninguém sabe o que pode sair”. 

Em algum momento a primeira parte foi verdade, mas há muito foi superado pelo avanço da tecnologia.

Contudo, a segunda parte nunca se fez tão verdadeira, o que traduz o cenário da insegurança jurídica presente em nosso país, de modo que mesmo o que consideramos “preto no branco”, expressamente previsto na lei, pode ter sua interpretação alterada e os efeitos serem imprevisíveis.

E a vítima da vez foi a coisa julgada, que tomou contornos inéditos no julgamento dos Temas 881 e 885 pelo Supremo Tribunal Federal.

Primeiramente, vamos contextualizar e exemplificar o caso que gerou todo o debate.

Na década de 90 diversos contribuintes tiveram decisões transitadas em julgado (portanto, fizeram coisa julgada) declarando o direito de não recolher a CSLL, visto a inconstitucionalidade na forma em que foi instituída. 

No julgamento da ADI 15 em 2007 o STF decidiu que a instituição da CSLL era constitucional, o que significava que os contribuintes deveriam pagar o tributo. 

Contudo, muitos contribuintes, tendo em vista as decisões transitadas em julgado de forma favorável para não recolher o tributo, continuaram sem pagar a contribuição. 

É justamente por este cenário que surgiram os Temas 881 e 885.

Os temas versam sobre o limite da coisa julgada e os efeitos provenientes das decisões proferidas em controle incidental ou concentrado de (in)constitucionalidade, notadamente quando houve a declaração de constitucionalidade de tributo que anteriormente fora considerado inconstitucional, na via incidental ou difusa, por decisão transitada em julgado.

Deixando o juridiquês de lado, o STF buscava decidir se na hipótese em que o contribuinte conseguiu um julgamento favorável com a declaração de inconstitucionalidade de um tributo de trato sucessivo[1] (declarando que não precisava mais pagar o tributo), se com a posterior manifestação do STF pela constitucionalidade do tributo (declarando que o tributo deve ser pago), os efeitos da coisa julgada estariam automaticamente cessados ou não. Em outras palavras, se o tributo poderia voltar a ser exigido de imediato ou não.

No julgamento dos referidos Temas o Supremo definiu as seguintes teses:

1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 

2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.

Quanto a primeira tese, cumpre ressaltar que o controle de (in)constitucionalidade de normas pode ser feito pelo Supremo Tribunal Federal de duas formas: pela via do controle concentrado, quando são opostas ações constitucionais específicas para este fim (ADI, ADC e ADPF)[2], e pelo controle incidental, quando o julgamento se dá mediante a análise da (in)constitucionalidade em processo inter partes[3], o que normalmente ocorre por meio do julgamento de Recurso Extraordinário.

Quanto ao controle incidental, ele pode ocorrer no julgamento individual de um Recurso Extraordinário, vinculando apenas as partes do processo, ou pode ocorrer por meio da chamada Repercussão Geral, quando um ou mais processos são selecionados como representativos de controvérsia e seu julgamento vincula os julgadores de todo o país a decidirem de acordo com o proferido pelo STF.

O instituto da Repercussão Geral foi instituído em 2007 para que o Supremo Tribunal Federal pudesse unificar seu entendimento sobre temas que chegam para sua apreciação com frequência.

Ciente dessas diferenças, o entendimento firmado na primeira tese é de que, antes do instituto da Repercussão Geral as decisões proferidas no controle incidental não impactavam automaticamente a coisa julgada, ou seja, mantinha-se os efeitos da decisão transitada em julgado. Em lógica inversa, as decisões proferidas em sede de Repercussão Geral acabam por interromper automaticamente os efeitos da coisa julgada.

A segunda tese firmada pelo STF deixa claro esse entendimento, evidenciando que além dos julgamentos em sede de Repercussão Geral, os julgamentos em controle concentrado também interrompem automaticamente os efeitos da coisa julgada. 

Na prática isso significa que a Fazenda não precisa ajuizar ação rescisória para revogar os efeitos da coisa julgada, já que a decisão superveniente de constitucionalidade proferida pelo STF interrompe automaticamente seus efeitos.

Ou seja, no caso acima narrado, as empresas terão que recolher a CSLL retroativamente desde 2007, corrigida pela SELIC, mas sem a incidência das multas punitivas e de mora, o que já representa uma diminuição no passivo gerado.

Recentemente foram julgados os Embargos de Declaração opostos, tratando da modulação dos efeitos (ou seja, a partir de qual momento a decisão produziria efeitos, se apenas para os casos futuros, a partir do julgamento dos Temas, ou se aos passados também) e a isenção quanto a mora e as multas tributárias.

A decisão foi parcialmente favorável ao contribuinte. 

O Supremo formou maioria para não modular os efeitos da decisão, de modo que retroage à todas as hipóteses previstas nas teses, assim como manteve os juros de mora.

Por outro lado, considerando a mudança de entendimento, em comparação à jurisprudência histórica do próprio Tribunal, o Supremo isentou os contribuintes das multas tributárias punitivas e de mora. 

Buscando olhar pelo lado bom da situação, o entendimento reverso das teses firmadas também é benéfica ao contribuinte, pois nos casos em que teve uma decisão transitada em julgado de forma desfavorável e posteriormente houve o entendimento favorável do Supremo, ou seja, tinha decisão obrigando ao pagamento e o STF decidiu que não deveria ser pago, se cumpridos os requisitos, também poderá buscar estes valores.

Outro alento é que o Supremo destacou a necessidade de, no caso de mudança de entendimento que seja desfavorável ao contribuinte, devem ser observados e respeitados os princípios da irretroatividade e das anterioridades anual e nonagesimal, a depender do tributo.

Contudo, algumas observações devem ser realizadas.

A primeira é que o Fisco não pode retroagir, tão somente por força da decisão superveniente do Supremo, e cobrar eventuais valores não pagos há mais de 5 anos, a contar da data da decisão de constitucionalidade. 

Isso ocorre porque o crédito tributário deve observar o prazo decadencial, que não pode ser suspenso ou interrompido, de modo que o lançamento deve ocorrer dentro de 5 anos da ocorrência do fato gerador para que não ocorra a decadência tributária.

Já a segunda é na hipótese de não ter ocorrido o referido lançamento dos valores com fatos geradores ocorridos há mais de 5 anos, a contar da decisão do STF que decidiu pela constitucionalidade do tributo.

Nesse cenário, o Fisco poderá lançar e cobrar somente os valores que estiverem abarcados dentro dos últimos 5 anos a contar do julgamento superveniente do STF.

Já a terceira questão é que o contribuinte, caso tenha uma decisão superveniente de inconstitucionalidade do tributo, mesmo que tenha uma decisão transitada em julgado obrigando ao pagamento, somente poderá cessar o pagamento após a decisão do STF e recuperar eventuais valores pagos a maior a partir do julgamento.

Portanto, os efeitos da cessação dos efeitos da coisa julgada ocorrem de forma prospectiva ao julgamento de (in)constitucionalidade do Supremo, não podendo retroagir aos fatos ocorridos antes da decisão, o que implica em dizer, com base no caso acima narrado, que a Fazenda não pode cobrar os valores anteriores a 2007, assim como o contribuinte, em casos que forem favoráveis à ele. 

O fato é que ainda haverá muita discussão e debates acerca das aplicações do julgamento proferido pelo Supremo, de modo que os Tribunais, inclusive os próprios Tribunais Superiores, terão que formar jurisprudência para sanar as lacunas existentes e pacificar o entendimento, pois embora não seja possível “saber o que pode sair da cabeça de juiz”, as regras do jogo devem estar definidas para que seja possível aplicá-las, a fim de se evitar o efeito surpresa e buscar a almejada segurança jurídica.


[1] Tributos de trato sucessivo são aqueles que a incidência se propaga no tempo, ocorrendo em diversos momentos, como a incidência da CSLL, IRPJ, etc.

[2] ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade); ADC (Ação Direta de Constitucionalidade); e ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental).

[3] É o mesmo que dizer que os efeitos da decisão afetarão somente as partes do processo.

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